Web Biology - Capitulo 26




Franzi a testa, sentindo meus olhos reclamarem mesmo ainda estando fechados. Deixei que minhas pálpebras se afastassem por milímetros, e a forte luz do sol atingiu em cheio minhas retinas, fazendo-me gemer baixinho e fechar os olhos novamente. Eu devia ter fechado as cortinas em algum momento da noite anterior; não que elas fossem impedir os raios solares de me perturbarem, mas pelo menos ajudariam um pouco. Provavelmente, eu estava ocupada demais para pensar em detalhes como esse. 
Tomei coragem e abri novamente os olhos, bem devagar e piscando algumas vezes para adaptar minhas pupilas. Me senti um pouco mais confortável dessa vez; respirei fundo, espreguiçando-me e recebendo a resposta preguiçosa de meus músculos. Eles haviam trabalhado bastante nas últimas horas e não queriam se mover, mas eu os forcei a se esticarem por alguns segundos, numa tentativa falha de me trazer disposição. Eu estava morta, exausta, esgotada, e o culpado por isso dormia feito pedra ao meu lado. 
Assim que o vi, escorado sobre o travesseiro, um sorriso sapeca surgiu em meu rosto. Eu nunca o havia visto dormindo, e imediatamente me senti injustiçada. Ele já havia me visto dormir uma vez, e posso garantir que a visão não fora das mais agradáveis. Já ele... Parecia uma escultura de um anjo que havia ganhado vida, e ressonava tranqüilamente, com o rosto calmo a poucos centímetros do meu. Tive a leve impressão de que seria capaz de observá-lo pelo resto da vida. 
Seu nariz por pouco tocava o meu, e seu cabelo, por mais bagunçado que eu o tivesse deixado, parecia ter sido arrumado durante o sono, voltando ao seu estado despojado e lindo de sempre. Seus lábios estavam fechados numa linha reta e fina, e seu peito nu subia e descia conforme sua respiração calma. Sua mão ainda repousava em minha cintura, como estava desde que caí no sono, e nossas pernas estavam novamente entrelaçadas, permitindo-me tentar esquentar seus pés gelados. Meu coração batia acelerado a cada detalhe que eu observava, e o sorriso insistia em permanecer, me fazendo sentir uma idiota. 
Uma idiota apaixonada. 
Engoli em seco ao notar o sentimento proibido lutar para se expandir ainda mais dentro de mim, sem conseguir encontrar espaço. Mas, de alguma forma, eu sabia que ele crescia a cada segundo, silenciosamente como sempre, e enrolava uma corda invisível ao redor de meu pescoço, pronto para me enforcar quando eu menos esperasse, e assim me render por completo. Suspirei profundamente, sentindo o sorriso se esvair de meu rosto, e encarei seus cílios, desejando encontrar os olhos dele me encarando de volta. Quem sabe assim eu conseguisse afastar todos aqueles conflitos de minha mente e simplesmente me perder no brilho de suas íris... Me esconder em meu refúgio mais que perfeito. 
Não sei por quanto tempo apenas observei os traços tranqüilos de seu rosto, sem conseguir sorrir. As inúmeras vozes dentro de minha cabeça, falando incessantemente sobre todos os recentes acontecimentos, me deixavam confusa demais para realmente sentir alguma coisa e manifestar esse sentimento. Somente quando um barulho familiar rompeu o silêncio do quarto, eu acordei de minhas reflexões, e subitamente fiquei alerta. O som se parecia com chaves balançando num molho, e tinha vindo do andar de baixo. Mais especificamente da porta de entrada. 
E foi então que eu finalmente entendi o que ele significava. 
Mamãe havia chegado. 
Meus olhos se arregalaram instantaneamente, ainda fixos no rosto de Thur, quase imóvel ao meu lado. Na mesma hora, a imagem de mamãe flagrando-nos me veio à mente, e minha garganta se fechou em pânico. Olhei para a porta entreaberta de meu quarto e graças a Deus meu impulso apavorado foi mais rápido que minha consciência. Me levantei com certo esforço, já que Thur resistia inconscientemente às minhas tentativas de me libertar de seu abraço, e corri silenciosamente até a porta, trancando-a com cuidado para não fazer barulho. 
Soltei todo o ar preso em meus pulmões assim que estava segura, fechando os olhos por alguns segundos e tentando pensar com clareza. Como eu conseguiria tirar Thur dali sem mamãe perceber? Ela com certeza viria pelo menos me dar um beijo, ou seja, eu precisava acordá-lo, e logo. Encarei seu corpo adormecido sobre a cama, encostada à porta, e só então percebi que, apesar do vidro fechado da janela, estava frio dentro do quarto. E opa. Eu estava nua. 
Corri até meu armário, e numa velocidade recorde, vesti uma calcinha e uma camisola qualquer. Virei-me de volta para a cama, prendendo depressa meu cabelo cheio de nós num coque desengonçado, e o som dos passos de mamãe subindo a escada acelerou meu coração. Droga, ela estava chegando e Thur mal havia acordado! Pelo menos a porta estava trancada; isso serviria para nos render algum tempo extras. 
Me esgueirei até Thur, cutucando-o com força, mas ele nem se moveu. Bufei, revirando os olhos, e segurei firme em seu braço, chacoalhando-o sem sutileza alguma. Ele franziu a testa, ainda de olhos fechados, e começou a reclamar baixinho numa língua provavelmente extinta há alguns séculos. Se eu não estivesse tão nervosa, teria rido, mas tudo que fiz foi trincar os dentes e balançá-lo com mais força, sem perceber que ele estava muito próximo da beira da cama. Umas três chacoalhadas depois, seu corpo não ofereceu resistência a minhas mãos, e tombou para o chão com um barulho doloroso. Maldita cama de solteiro. 
Levei as mãos à boca, preocupada, enquanto o ouvia resmungar uns sete palavrões seguidos. Dessa vez, não consegui conter um risinho nervoso, até que ele se levantou, com a mão cobrindo parte de seu rosto e uma careta de dor. 
- Desculpe – sussurrei, sem ter muita certeza de que ele estava realmente acordado, mas logo tive minha confirmação: a maçaneta da porta do quarto girou, indicando a chegada e mamãe, e imediatamente os olhos de Thur se arregalaram, assim como os meus fizeram antes. Seus olhos foram da porta até mim rapidamente, e eu levei o indicador à boca, pedindo silêncio. 
- Vou me esconder debaixo da cama – ele cochichou, ainda hesitante, e seu rosto demonstrava um misto de sono, dor, preguiça e medo. 
- Não seja idiota! – falei no mesmo volume, atirando suas roupas espalhadas pelo chão em sua direção sem nem ver onde elas o atingiam – Vista-se e pule pela janela! 
- O quê? – Thur disse, num sussurro mais alto, e eu me virei no mesmo instante, repreendendo-o com o olhar – Pela janela? Você quer que eu morra? 
- Se não parar de enrolar, vou querer sim! – briguei, atirando sua boxer em seu rosto sem querer – Anda logo! 
Ele pegou a boxer, revelando sua expressão ranzinza, e a vestiu rapidamente, bocejando enquanto o fazia. Olhei ao redor, analisando toda a bagunça que havíamos feito sobre minha escrivaninha (digamos que eu e Thur quase a quebramos também, junto com boa parte da mobília do quarto, mas finja que não ficou sabendo disso), e rapidamente a ajeitei, ouvindo mamãe insistir na maçaneta mais algumas vezes antes de parar. Ou pelo menos eu achei que tivesse parado. 
- Querida? – ela chamou cuidadosamente, batendo à porta alguns segundos depois, e eu olhei para Thur, com medo até de respirar. Ele devolveu meu olhar por um momento, terminando de afivelar seu cinto, e seus olhos pairaram sobre a porta, tensos. Eu examinava seu rosto, tentando achar algum jeito de despistá-la, mas nada me vinha à cabeça. 
- Fale com ela – eu li seus lábios dizerem, enquanto ele voltava a me encarar e mamãe voltava a me chamar – Diga que já vai. 
- Não! – respondi, apavorada, e ele me lançou um olhar insistente enquanto vestia a camisa – Vou fingir que estou dormindo! 
- Quem está aí? – ela perguntou, e eu cobri minha boca com as mãos – Lua, com quem você está falando? 
- Hm... Erm... Hã? – eu disse, em voz alta, e Thur manteve seus olhos fixos em mim conforme eu a respondia – Ahn, oi, mãe... Já chegou, é? 
- Filha? Por que a porta está trancada? – mamãe questionou, parecendo um pouco mais tranqüila ao ouvir minha voz. 
- É que... – comecei, olhando para Thur sem saber direito o que responder, e vi que ele me incentivava a continuar enquanto vestia o paletó – Fiquei com medo por ter dormido sozinha em casa e resolvi me trancar. 
Ele assentiu, me encorajando, e eu fiz uma careta diante de minha desculpa esfarrapada. 
- Ah – ela falou, compreensiva – Me desculpe por ter dormido fora, mas é que a festa realmente estava boa e... Por que você ainda não abriu a porta pra mim? 
Nossos olhos se arregalaram mais ainda com o tom ofendido de sua voz, e eu imediatamente corri até Thur, puxando-o com força até a janela e abrindo-a, tentando fazer o menor barulho possível. 
- Só um minuto, eu já estou indo! – falei, enquanto Thur pulava num pé só para colocar as meias, e voltei a cochichar para ele – Vai! 
- Calma, calma, tô indo! – ele reclamou, apoiando-se na parede sob a janela para colocar um dos sapatos, e eu fiz menção de correr até a porta, mas ele me segurou primeiro. 
- O que foi? – rosnei, ansiosa, e ele cerrou os olhos, sorrindo de um jeito meio emburrado. 
- Vou me jogar da sua janela e não mereço nem um beijo? – ele reclamou, fazendo beicinho, e eu não consegui não sorrir, por mais nervosa que estivesse – E se eu não sobreviver à queda? 
- Vaso ruim não quebra – retruquei, erguendo as sobrancelhas em tom de superioridade, e ele notou o humor em minhas palavras, sorrindo mais – Tchau, Aguiar. 
- Você vai me pagar por isso, Blanco. Esse terno foi uma fortuna! – Thur disse, apenas movendo os lábios enquanto eu me afastava, e logo em seguida fez cara de cãozinho sem dono, fazendo biquinho e apontando para os próprios lábios com o indicador – Só um beijinho, vai! 
- Beija isso! – sussurrei, rindo, e mandei dedo pra ele, vendo sua boca se escancarar pela ofensa, porém ainda sorrindo. Ele terminou de calçar seus sapatos, olhando de cara feia pra mim, e me mostrou a língua antes de se virar para o parapeito e agilmente colocar-se para fora da janela. 
Paralisei quando o vi pendurado, e apesar de saber que a queda não o machucaria devido à baixa altura, fiquei com um pouco de medo. Observei Thur se preparar para pular, e alguns segundos depois ouvi ele xingar baixinho e sumir completamente, com um baque surdo e um barulho alto de folhas se mexendo e gravetos se quebrando. Prendi um gemido de pavor, e corri até a janela. 
Lua, que barulho foi esse? Abra essa porta agora! – mamãe chamou mais uma vez, parecendo impaciente, e eu mal consegui ouvi-la. Vi Thur se levantando no jardim, com as mãos nas costas e os cabelos repletos de pequenas folhas, e mordi o lábio inferior, com pena. Ele lançou um breve olhar para cima, e seu rosto demonstrou um pouco de dor, deixando-me ainda mais amolecida. Mandei-lhe um beijinho de desculpas, e seu rosto pareceu desobedecer a suas ordens, rapidamente mudando de expressão. Thur sorriu pra mim, daquele jeito estonteante que me fazia sorrir junto, e correu até seu carro, mancando um pouco, porém bastante saudável para quem havia saltado uma janela. Respirei fundo, rindo baixinho, e mamãe voltou a bater à porta, arrancando-me do momento divertido. 
- Calma, já vou! – exclamei, irritada, e corri até ela, destrancando a porta e abrindo-a com pressa – O que foi? 
- Por que essa demora toda? Quem estava aí com você? Que barulho foi esse? – ela disparou, de braços cruzados e com uma expressão não muito amistosa. 
- Eu demorei porque estava com muito sono, não sou obrigada a acordar tão cedo em pleno fim de semana só porque você chegou em casa – respondi, sendo um pouco mais grossa que o aconselhável pela despedida apressada de Thur – Eu estava falando sozinha, xingando esse frio maldito, e os barulhos que você ouviu vieram lá da rua, não tenho nada a ver com isso. Satisfeita? 
Mamãe esticou o pescoço enquanto eu falava, bisbilhotando o quarto agora vazio, e ficou me encarando por alguns segundos antes de responder. Meu coração batia em minha garganta, acelerado devido às minhas mentiras muito mal formuladas, e apostei todas as minhas esperanças na enorme confiança que mamãe tinha em mim. 
- Sim, me desculpe – ela suspirou, parecendo realmente convencida, e o alívio me dominou – Pode voltar a dormir se quiser. Eu só queria saber se você estava bem, não quis interromper seu sono. Também vou me deitar, preciso descansar um pouco. 
- Hm... Tudo bem – assenti, arrependida pela forma um tanto rude pela qual a tratei, porém sem baixar a guarda. Se era pra mentir, que eu fosse convincente até o fim, certo? 
Ela me deu um beijinho na testa antes de caminhar até seu quarto e eu fechei a porta novamente, me encostando nela e rindo baixinho. Pode parecer idiota, mas foi inevitável me perguntar se Thur estaria rindo naquele momento também, dirigindo sua Ferrari a caminho de casa. Após alguns segundos distraída com aquele pensamento, deduzi que estava sendo imbecil demais e me contentei em rir sozinha, aliviada e feliz por tudo ter dado mais do que certo. Me afastei da porta, observando calmamente o quarto enquanto me aproximava da cama, e todos os momentos daquela noite voltaram à minha mente, como um filme acelerado. Me deixei cair sobre o colchão, suspirando, e abracei forte o travesseiro com o perfume dele, afundando meu rosto ali e respirando fundo. 
- Boa noite, Thur! – sussurrei contra a fronha perfumada, e puxei os cobertores para meu corpo antes de voltar a dormir profunda e quase que instantaneamente. 

Já havia escurecido quando voltei a abrir os olhos, bem menos cansada que antes e com uma fome estratosférica. O silêncio ainda predominava em casa, exceto pelo barulho da TV no andar de baixo, provavelmente responsabilidade de mamãe. Dessa vez, foi muito fácil levantar e fazer uma visita ao banheiro, mais especificamente ao chuveiro. 
Entrei de cabeça sob a cachoeira quente, e me lavei sem muitas delongas. Logo em seguida, escovei os dentes, e assim que havia acabado, me encarei no espelho. Meus lábios pareciam constantemente curvados num sorriso, sem que eu sequer me desse conta disso, meus olhos brilhavam mais que o normal, minhas bochechas estavam coradas e quentes, meu coração parecia forte, batendo num ritmo mais acelerado que o habitual... Eu estava diferente. Eu estava bem. 
Deixei o banheiro cantarolando uma música qualquer, e assim que minhas mãos se dirigiram à toalha enrolada em meu corpo, me lembrei de Thur arrancando-a na noite anterior. Um leve arrepio percorreu meu corpo instantaneamente; com certeza, eu levaria algum tempo para me recuperar daquela noite. Tive que respirar fundo antes de prosseguir, mas parecia que alguém não queria que eu o fizesse. 
Meu celular tocou assim que minhas mãos se dirigiram à toalha, e eu corri para atendê-lo, olhando o visor antes. Um nó dolorido se formou em minha garganta e todo o clima agradável desapareceu quando li o nome escrito na tela. 
- Alô? – murmurei ao atender, sentando-me na cama e levando a mão livre ao pescoço numa tentativa idiota de fazer minha voz fluir melhor, e também de conter o enjôo forte que se apoderou de meu estômago, extinguindo minha fome por completo num segundo. 
- Oi, meu amor! – Mic sorriu, parecendo extremamente aliviado, e meus olhos se fecharam quando senti a alegria em sua voz – Acabei de chegar de viagem! 
- Que bom – respondi com a maior empolgação forjada que consegui, mordendo meu lábio inferior logo em seguida e sentindo meus olhos ficarem úmidos numa velocidade alucinante. 
- Como você tá? – ele perguntou, animado - Aproveitou bastante seu fim de semana sem mim, aposto! 
Levei alguns segundos para fingir um risinho e encontrar minha voz para respondê-lo. Se ele soubesse o impacto que essas brincadeiras tinham em mim, não as faria. Ou talvez, fizesse pior, para me dar exatamente o que eu merecia receber: dor. 
- Tô bem – falei simplesmente, e ao abrir os olhos, vi boa parte de meu quarto em borrões devido à água que se acumulava neles – E você? Como foi a viagem? 
- Confesso que eu tô um pouco triste, porque faz um tempão que eu não te vejo, e isso me deprime! – Mic respondeu, fingindo um desânimo fúnebre na voz, assim como eu fingia o contrário na minha – Mas a viagem foi ótima. Matei a saudade da família, descansei bastante, segui todas as suas recomendações... Digamos que estou fisicamente saudável. Meu emocional anda meio doente sem você pra cuidar dele. 
Uma lágrima caiu por meu rosto, e eu prendi um soluço com esforço. 
- Me desculpe por isso – falei baixinho, tentando fazer com que minha voz estrangulada soasse proposital. Ele ficou em silêncio por alguns segundos, me deixando um pouco preocupada, e quando voltou a falar, sua voz parecia séria. 
Lu... Tá tudo bem mesmo? Você me parece... Preocupada com alguma coisa. O que foi? 
- Eu estou bem, Mic, juro – sorri, esforçando-me ao máximo para disfarçar minhas lágrimas – Não se preocupe comigo. 
Ficamos em silêncio por mais alguns segundos, enquanto ele provavelmente decidia se acreditava em mim ou não. 
- Hm... Então tá – ele finalmente disse, agora com seu tom natural, e eu respirei fundo, aliviada – Vou desfazer as malas agora e dormir... Quero estar totalmente disposto pra voltar à rotina amanhã, e o mais importante, pra voltar pra você. 
- Vai lá – murmurei, ainda sorrindo tristemente, enquanto as lágrimas continuavam transbordando – Boa noite. 
- Boa noite, meu amor, até amanhã – Mic sussurrou, e eu tive certeza de que estava sorrindo – Te amo muito! 
- Eu também – falei, e desliguei logo em seguida. Apoiei meus pés sobre o colchão e abracei meus joelhos, enterrando meu rosto neles e deixando que a dor e o choro me engolissem. 
Meu coração parecia rodeado de agulhas, porque a cada batimento, inúmeras fisgadas o dominavam. Ele me amava tanto... E eu, mesmo sabendo que não merecia todo aquele amor tão puro, era incapaz de dizer a verdade e afastá-lo de mim... Afastá-lo do monstro egoísta e inescrupuloso que eu era. Porque eu também o amava, e não conseguia me imaginar sem ele ao meu lado. 
Mas havia outra pessoa ocupando o mesmo espaço em meu coração. E por mais que eu tentasse, escolher um só me parecia inaceitável. Ambos eram tudo o que eu sempre quis, e tudo que eu jamais teria. Era extremamente errado e impossível ter os dois... Meu coração não suportaria a culpa. 
Poucos segundos depois, ergui meu rosto, enxugando as lágrimas e tentando contê-las em vão. Não adiantava chorar diante de meu dilema, de que adiantariam lágrimas? Por mais que aquela dúvida me corroesse, não fazia sentido algum ficar chorando ao invés de tentar ser o mais objetiva possível e pesar minhas opções. Fiquei de pé, fungando baixinho, e assim que dei um passo na direção do armário para me vestir, meu celular voltou a tocar. 
Fechei os olhos com força, hesitante, com medo de que fosse Mic novamente. Não sei se conseguiria fingir outra vez. Após alguns toques, engoli o choro com esforço, peguei o aparelho sem coragem de ver o número e atendi. 
- Alô? – falei, tentando parecer firme, e a voz do outro lado da linha fez minhas pernas tremerem tanto que por pouco caí no chão, ao invés de sentar na cama outra vez. 
- Por favor, diga que acordou há pouco tempo pra que eu me sinta menos preguiçoso por só ter acordado agora – Thur sorriu, com a voz levemente sonolenta, e meus olhos se arregalaram ao ouvi-la.
- O que exatamente há de errado com você? – murmurei, sem conseguir esconder meu espanto – Primeiro você invade minha casa, depois descobre meu telefone... O que vai ser da próxima vez? 
- Acha que nunca fiquei sozinho com o celular do Mic por alguns minutos? – ele riu, parecendo se divertir com minha reação – E quanto à invasão da sua casa, prefiro não revelar meu segredo. Vou deixar você se descabelar pelo resto da vida. 
- Vai sonhando – bufei, revirando os olhos. Mentira, eu sabia que passaria um bom tempo tentando descobrir como ele havia feito aquilo. 
- Já sonhei – ele retrucou, esperto – Não houve um segundo do meu sono sem você em meus sonhos hoje. 
Respirei fundo, ignorando suas provocações sem precisar de muito esforço. A conversa com Mic ainda estava surtindo efeito em mim, e eu preferi não incentivá-lo. 
Thur, por que você ligou? – perguntei com firmeza, sem querer estender muito aquela conversa – Se foi pra me provocar, fique sabendo que... 
- Que o quê, Lua? – ele me interrompeu, igualmente firme – Qual é a mentira que você vai me contar dessa vez? Que me odeia, quando eu sei que você está se envolvendo comigo? Que não é certo nós ficarmos juntos, quando eu sei que não existe nada mais certo que você e eu? 
- Pára com isso! – pedi, fechando os olhos, e antes que eu pudesse me conter, já estava chorando de novo – Não me pressione mais por hoje, por favor. 
Ouvi ele respirar fundo do outro lado da linha, e logo em seguida, voltar a falar, com a voz grave. 
- Ele te ligou, não foi? 
Não consegui responder, apenas continuei chorando. Me sentindo extremamente suja por querer que Thur estivesse ao meu lado para me abraçar e me fazer acreditar que tudo estava bem, como ele havia feito na noite passada. Não precisei responder para que ele soubesse o que havia perguntado. 
- Me desculpe, eu... Devia ter imaginado que ele ligaria quando chegasse – Thur falou, sério e parecendo um tanto desapontado - Vou desligar. 
- Não! – murmurei impulsivamente, sem querer ficar sozinha com minha angústia nem deixá-lo chateado com meu choro idiota – Não precisa desligar... Continue conversando comigo, por favor. 
Ele não disse nada por alguns segundos, processando meu pedido inesperado, e eu não conseguia impedir as lágrimas de rolarem livremente por meu rosto. Pode parecer mentira, mas eu me sentia extremamente carente, e uma certa saudade de Thur me atingiu ao ouvir sua voz, fazendo-me apoiar meu queixo em meus joelhos e imaginar por um segundo que era em seu ombro que minha cabeça repousava. 
- Claro... Eu só não sei se sou muito bom nisso – ele gaguejou, recuperando a firmeza aos poucos - Mas prometo dar o meu melhor. 
- Obrigada – sorri fraco, grata, e me deitei lentamente na cama, encolhida. Querendo ainda mais que pudéssemos conversar pessoalmente, e que seu hálito de canela pudesse bater em meu rosto a cada palavra, e que suas mãos pudessem fazer carinho em minha cintura enquanto sua voz me fazia viajar para um lugar bom. 
- Hm... Sobre o que você quer conversar? – ele perguntou, sem saber bem por onde começar. Pensei por alguns segundos, e uma pergunta me veio à mente. 
- Por que não foi ao baile? 
- Eu fui – Thur respondeu, e eu franzi a testa, confusa – Mas é claro que você não estava lá, e eu não tive motivos pra ficar. Além do mais, eu esqueci a Kelly, e tive que sair correndo pra buscá-la...
- Espera um pouco – falei, interrompendo-o, sem saber se tinha ouvido direito – Você esqueceu a Kelly? 
- Por que a surpresa? Eu faço isso com mais freqüência do que você imagina – ele sorriu, e eu não pude deixar de rir nem que fosse um pouco, imaginando a cena de Kelly chegando atrasada ao baile, sem acompanhante e completamente enfurecida – Ela deve ter me entupido de magia negra, mas eu não me importo. Não se surpreenda se eu me cortar fazendo a barba e sangrar até morrer, a culpa é toda dela. 
- Credo! – eu o repreendi, ainda rindo de leve, e assim que voltamos a ficar sérios, um longo silêncio predominou. 
Lu? – ele chamou, quando eu já estava começando a achar que a ligação havia caído. 
- Hm? 
- Nada... Só quis me certificar de que não estava segurando o telefone à toa. 
Sorri fraco, perguntando-me se existia algum tipo de conexão entre nossas mentes para que pensássemos a mesma coisa no mesmo momento. Ficamos mais algum tempo em silêncio, apenas ouvindo as respirações um do outro, até que eu o quebrei, sem saber direito se me arrependeria por isso. 
Thur? 
- Hm? 
- Eu não consigo... Escolher. 
Meus olhos vagavam pelas cortinas ondulantes, ainda levemente úmidos, e parte de minha mente imaginava que expressão seu rosto havia adotado. Ele com certeza sabia do que eu estava falando; não eram necessárias mais palavras para que ele me entendesse. 
- Você sabe que não posso te ajudar nisso – ele suspirou, após digerir minha frase – Não conseguiria ser imparcial num assunto como esse. 
Fiquei em silêncio novamente, sem saber o que responder, e Thur continuou a falar após algum tempo. 
- Eu quero que Mic seja feliz, de verdade, e quero muito que você também seja. Mas, sinceramente, eu não vejo como ele pode te fazer verdadeiramente feliz... Sendo que você tem a mim. 
Agradeci mentalmente o fato de estar deitada. Se estivesse em pé, teria desmontado feito um castelinho de cartas cuja base foi desfalcada após ouvi-lo falar aquilo. 
- Ele me faz feliz – murmurei, franzindo levemente a testa ao pensar na alegria que sentia quando estava com Mic – O problema é que... Você também. 
- Me desculpe por isso – ele pediu, um tanto irônico, interpretando minha frase de uma maneira um tanto errada – Vou tentar te magoar mais freqüentemente de hoje em diante. Quem sabe assim eu te ajude a tomar a decisão certa que você tanto deseja. 
- Não seja idiota – falei, sentindo a acidez de seu tom de voz destruir o pouco de estabilidade que começara a se reconstruir em mim. Por que ele estava sendo tão estúpido? Era compreensível que ele se sentisse apreensivo sobre aquele assunto, mas eu estava no olho do furacão e não estava distribuindo patadas! 
- Não seja idiota você – ele retrucou, e respirou fundo logo em seguida, provavelmente guardando para si as palavras que realmente desejava dizer – Só me avise quando decidir, está bem? Eu odiaria estar mal informado sobre esse assunto. 
- Você provavelmente vai descobrir isso sozinho – eu disse, sem emoção – Procure nos jornais pela notícia de uma garota de 17 anos que morreu ao se atirar de um prédio e vai ter sua resposta. 
- Se você sequer pensar numa coisa dessas, eu te mato com minhas próprias mãos antes que possa se suicidar – ele rosnou, furioso diante de minha hipótese. 
- Obrigada, vai adiantar meu trabalho – rebati, seca. Eu estava totalmente desmotivada a continuar naquela luta, já que sabia que não poderia vencê-la sem uma perda que eu não sabia se suportaria ou sem um arrependimento irreversível. Ele respirou fundo outra vez, provavelmente tentando não gritar comigo, e sua voz soou controlada ao emanar do telefone de novo. 
- Não precisa se sacrificar assim, Lua. Se não consegue se decidir agora, deixe que o tempo decida por você. Deixe que as coisas se encaminhem sozinhas. Confie em mim, e quando menos esperar, vai tomar sua decisão espontaneamente. 
Conforme falava pausadamente, Thur ia adotando um tom de voz mais calmo e até um pouco otimista, e eu percebi que meu coração seguia pelo mesmo caminho. Talvez eu devesse conversar mais vezes com ele; além de suas palavras serem quase sempre interessantes, sua voz me ajudava a pensar e a me acalmar. Pelo menos por telefone. Suas habilidades vocais ao pé de meu ouvido eram outro caso. 
- Espero que você esteja certo – suspirei, sentindo menos vontade de me suicidar. O que não significa que a sugestão tivesse sido totalmente descartada. 
- Eu também – ele murmurou, como se falasse consigo mesmo, e eu desejei poder ler seus olhos e seu rosto naquele momento. 
- Acho melhor desligarmos – sussurrei, depois que o silêncio voltou por alguns minutos, apesar de estar gostando do suave som de sua respiração – Eu preciso colocar um pijama e tentar comer alguma coisa. 
- Não me diga que está nua! – Thur sorriu, e o clima da conversa subitamente voltou a ser tolerável – Ou melhor, diga sim! 
- Desculpe desapontá-lo, mas não, eu não estou nua – falei, rindo um pouco, surpresa por seu interesse erótico incessante – A toalha estragou seus planos. 
- Ah, não me fale uma coisa dessas! – ele gemeu, torturado, e eu ri mais – Me dá vontade de repetir as seis vezes da noite passada só de pensar! E só não chegamos a dez porque sua mãe chegou, e a propósito, vou mandar a conta de outro terno Armani pra sua casa muito em breve! 
- Ah, vai sim, e eu te mando a conta da minha cama nova – retruquei, tentando disfarçar meu sorriso divertido e anulando qualquer tipo de reclamação dele - Boa noite, Thur. 
- Sua cama está em perfeitas condições, assim como o meu terno – ele confessou, fazendo-me sorrir, vitoriosa - Boa noite, Lu. 
- Ah, antes que eu me esqueça – murmurei, tímida – Obrigada por... Hm, você sabe. Ter conversado comigo. 
- Eu que agradeço – ele sorriu, com sua voz derrete-gelo – Fique à vontade pra me ligar quando quiser... Exercitar as palavras é algo que eu deveria fazer com mais freqüência. 
- Até que suas palavras são... Legais – falei, ouvindo-o rir logo em seguida (e com razão, afinal, eu disse que as palavras dele eram legais) – Quer dizer, eu meio que... Gosto delas. Mas não espere que eu te ligue. 
- Hm, deixe-me adivinhar... Vergonha, talvez? – Thur chutou, e eu ri baixinho numa resposta afirmativa – Eu juro que tento entender você, mas quanto mais perto de conseguir eu chego, mais confuso eu fico. Alguém por acaso já te disse isso? 
- Não – respondi, ainda sorrindo debilmente – Ninguém nunca me disse a maioria das coisas que você me diz. 
Fiquei séria subitamente ao ouvir minhas próprias palavras impensadas. Elas eram a pura verdade, mas talvez eu não devesse tê-las dito. Não queria demonstrar nenhum tipo de sentimentalismo exagerado, ainda mais estando na situação de indecisão em que eu estava. Ele pareceu entender o significado de meu silêncio, e murmurou alguns segundos depois: 
- Eu disse pra você confiar em mim... Não disse? 
Imediatamente, as palavras que ele me dissera há pouco tempo voltaram a ecoar em meus ouvidos. 
Confie em mim, e quando menos esperar, vai tomar sua decisão espontaneamente. 
- Boa noite, Thur – repeti, e desliguei logo em seguida, sem nem querer ouvir sua resposta e de repente deixar que ele me confundisse mais ainda. Fiquei encarando o teto por um tempo, desembaralhando minha mente, e sem conseguir o menor sucesso, me levantei, fiz o que tinha que fazer e voltei a me jogar na cama, dessa vez demorando um bom tempo para cair no sono. 

Créditos: Fanfic Obsession.

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